Você sabe realmente o que está assinando?
Quando um empresário recebe uma proposta de investimento, o entusiasmo inicial costuma girar em torno de três palavras: capital, crescimento e escala.
O que poucos percebem — até ser tarde demais — é que o contrato que viabiliza essa rodada pode conter obrigações, restrições e riscos jurídicos severos que passam despercebidos num primeiro momento. Entre os modelos mais usados no Brasil, o mútuo conversível se destaca pela popularidade… e pelo potencial de armadilhas.
Neste artigo, vamos mostrar por que esse tipo de instrumento exige muito mais atenção do que a maioria imagina, com base em cláusulas reais analisadas em operações recentes que o escritório atuou.
Se você é empresário e pensa em captar recursos externos, este conteúdo é essencial.
O que é o mútuo conversível, na prática?
O mútuo conversível é um contrato híbrido: nasce como um empréstimo, mas prevê, desde a origem, a possibilidade de se transformar em participação societária no futuro. A promessa é simples: o investidor aporta agora e, se tudo ocorrer bem, ele “entra no capital” da empresa numa futura rodada, seguindo critérios previamente acordados.
E é aí que pode nascer um possível problema. Na grande maioria das vezes, esses critérios costumam favorecer a parte investidora, e muitos empreendedores assinam sem entender o impacto estratégico e jurídico dessas cláusulas.
Enxergando esse cenário, apontamos aqui 5 armadilhas recorrentes no mútuo conversível, quando não analisado por um especialista na área.
Vamos lá.
- Valuation com teto e piso: seu crescimento pode ser ignorado
Muitos contratos de mútuo definem valores máximos e mínimos para a conversão futura, o que limita o ganho do empreendedor mesmo que a empresa dispare em valorização. Imagine: sua empresa dobra de valor em 12 meses, mas o investidor converte usando um valuation pré-fixado que ignora totalmente esse crescimento. Isso acontece porque a cláusula de conversão usa um “valuation máximo pós-money”, já estabelecido, como âncora.
Além disso, há casos em que a métrica usada para determinar o valuation é genérica — “múltiplos de mercado” ou “negociação de boa-fé” — abrindo margem para conflito e manipulação de critérios. Desta forma, esse é um primeiro ponto de atenção que deve ser analisado e negociado, se o caso.
- Cláusula de vencimento antecipado: a dívida pode voltar como uma bomba na operação
Poucos empresários sabem que o mútuo conversível, embora tenha aparência de capital de risco, é um instrumento de dívida até a conversão. E como toda dívida, ele pode ser exigido de volta — com correção, juros e penalidades. Os contratos frequentemente trazem cláusulas de vencimento antecipado, ativadas por motivos como:
- Descumprimento de qualquer obrigação contratual;
- Falta de aprovação formal da próxima rodada;
- Simples não conversão no prazo estipulado.
O resultado? Mesmo investindo o valor na operação, o empreendedor pode ser obrigado a devolver integralmente o aporte, com multa. E, claro, com o maior risco, que é não ter o retorno proporcional ao esforço ou risco assumido.
A solução jurídica aqui passa por duas frentes estratégicas:
- Negociar a cláusula de vencimento antecipado com critérios objetivos e proporcionais. Evite cláusulas genéricas do tipo “qualquer descumprimento contratual”. Negocie para que o vencimento antecipado só possa ser acionado em casos concretos de inadimplemento grave, como:
- uso indevido dos recursos;
- fraude ou dolo comprovado;
- inoperância ou dissolução da sociedade.
Além disso, estabeleça um prazo de cura, por exemplo, “caso haja inadimplemento, a empresa terá 15 ou 30 dias para sanar o descumprimento antes da ativação do vencimento.” Isso cria um mecanismo de proteção contra penalizações automáticas.
- Criar um modelo de conversão automática (fallback clause). Inclua uma cláusula que determine que, se a conversão não ocorrer até a data final por qualquer razão operacional, o mútuo será automaticamente convertido pelo valuation mínimo — ou outro critério predeterminado. Assim, mesmo que haja atraso, o investidor entra no capital e não no passivo. Isso protege ambas as partes: o investidor garante entrada no equity e o empresário evita a execução judicial da dívida.
O ponto é que empresários precisam entender que, enquanto o investimento estiver travado no formato de mútuo, a empresa está juridicamente endividada. E o problema não é o mútuo conversível em si. É, na verdade, deixar ele armado com cláusulas desequilibradas e sem plano de contingência. Com análise criteriosa e redação estratégica, é possível blindar esse ponto sem afastar o investidor, mas garantindo que a operação continue segura mesmo em cenários adversos.
Vamos à terceira “armadilha”
- Diluição silenciosa: quando o controle escapa bem devagar.
Em contratos de mútuo conversível, a diluição direta não ocorre no momento da assinatura.
Mas ocorre, muitas vezes, em duas fases posteriores: na conversão propriamente dita e na criação de um Stock Option Pool (reserva de participação para colaboradores e executivos), quando adotado.
Esse segundo ponto é ignorado por muitos empresários. Ao criar um pool de 10%, por exemplo, a diluição do fundador aumenta significativamente — e o percentual final pode cair para menos de 15% da empresa, mesmo sem rodadas adicionais. Isso impacta diretamente a governança, o direito de voto e o poder de veto do fundador.
- Lock-up e não concorrência: liberdade empresarial travada
Cláusulas de lock-up proíbem o empresário de vender sua participação por períodos que variam de 18 a 36 meses geralmente. Já as cláusulas de não concorrência impedem que o fundador, mesmo após sair da empresa, atue no mesmo mercado por até 2 anos.
O empreendedor não apenas entrega parte do capital — entrega também sua liberdade de atuação. E tudo isso ocorre antes mesmo da sociedade ser formalizada.
Do ponto de vista do investidor, essas cláusulas têm uma função de proteção legítima:
- Lock-up evita que o fundador saia imediatamente após o aporte, vendendo sua participação enquanto o investidor ainda está em fase de risco.
- Não concorrência protege o investidor contra a criação de uma empresa concorrente com o mesmo know-how, rede de contatos ou produto derivado — o famoso “clonar a operação”.
Até aqui, o raciocínio parece razoável. Mas onde está o problema?
Essas cláusulas geralmente são desproporcionais e mal calibradas. Veja alguns riscos claros:
- Lock-up excessivo = falta de flexibilidade societária. Durante o período de lock-up, o empresário não pode fazer reestruturações, trazer novos sócios estratégicos ou mesmo sair da operação com liquidez, mesmo em caso de divergência com o investidor. Pior: em contratos mais rígidos, o lock-up não se limita à participação, mas se estende à direção da empresa — impedindo o fundador de se afastar da operação sem aval do investidor.
- Não concorrência ampla e um bloqueio profissional desnecessário. Em muitos contratos, a cláusula de não concorrência define escopo genérico como: “O fundador não poderá atuar direta ou indiretamente em qualquer empresa que explore atividade similar, correlata ou concorrente, no território nacional, por até 2 anos.” O problema aqui está em três palavras: “correlata”, “território nacional” e “2 anos”.
Isso pode ser interpretado de forma extremamente abrangente, impedindo o empresário de:
- atuar como consultor em seu setor;
- investir em outros negócios similares;
- fundar um novo projeto, mesmo com proposta diferente.
Na prática, o fundador entrega sua liberdade estratégica e profissional, mesmo sem ter formalizado a venda de participação ainda.
A solução aqui exige negociação técnica e proporcionalidade contratual. Aqui vão alguns caminhos estratégicos:
Delimite escopo, geografia e tempo. Negocie cláusulas de não concorrência com critérios objetivos: em vez de “qualquer atividade correlata”, defina segmentos específicos (ex: “plataformas de gestão financeira B2C”); limite o alcance territorial (ex: apenas estados em que a empresa já atua); reduza o prazo para até 12 meses, ou escalone a restrição conforme a participação do fundador (quanto menor a quota, menor o prazo).
Insira cláusulas de exceção e flexibilização. É possível prever exceções como atuação como investidor-anjo ou mentor em outros negócios, permissão para atuar em áreas não concorrentes ou como sócio não gestor, saída antecipada do lock-up mediante aprovação do conselho ou pagamento de multa justa.
Negocie uma contrapartida pelo período de não concorrência. Se o investidor exige não concorrência pós-saída, o contrato pode prever uma remuneração pelo tempo de inatividade forçada. Isso é comum em mercados maduros, onde a cláusula é tratada como um acordo de não atuação remunerado — e não uma proibição unilateral.
Por fim, incluir gatilhos de liberação em caso de conflitos ou descumprimentos pode também ser possível. O ideal é prever que caso o investidor descumpra cláusulas estratégicas ou a empresa entre em inatividade, as travas de lock-up e não concorrência se dissolvam automaticamente. Isso dá equilíbrio e evita aprisionamento contratual.
Aceitar capital com cláusulas restritivas sem calibragem estratégica é como vender parte do negócio e, de brinde, vender também o próprio futuro profissional. Empresários precisam entender que um contrato de mútuo conversível bem feito não é só sobre dinheiro. É sobre liberdade de decisão, reposicionamento futuro e blindagem da trajetória empreendedora. Se o contrato tira esses elementos, o custo real do investimento pode ser muito maior do que os zeros no cheque.
- Cláusulas de governança que esvaziam o poder do fundador
A depender do contrato, o investidor pode adquirir, mesmo como minoritário:
- Direito de veto sobre decisões estratégicas
- Participação obrigatória em conselhos
- Direito a voto afirmativo em reorganizações societárias
Isso significa que o empresário, mesmo com 60% da empresa, pode não conseguir decidir mais nada sozinho. Sem entender a “engenharia jurídica” do contrato, muitos fundadores perdem o controle formal e prático do negócio que criaram. Vamos trazer na sequência alguns pontos para que o empresário saiba como proteger juridicamente em rodadas de investimento
- Clareza e objetividade nas cláusulas de conversão. Evite termos vagos como “valuation de mercado” ou “condições a definir”. Estabeleça métricas objetivas (ex: múltiplos de EBITDA) e prazos máximos para a conversão.
- Simule todos os cenários de diluição antes da assinatura. Faça o cálculo pós-conversão, incluindo o Stock Option Pool e futuras rodadas. O ideal é projetar até três cenários de diluição futura para tomar decisão consciente.
- Negocie cláusulas de lock-up e não concorrência com limites justos. Impor travas absolutas ao empresário pode parecer segurança para o investidor —
Mas é preciso negociar prazo, escopo e proporcionalidade. - Delimite claramente os poderes de governança. Evite cláusulas de veto irrestrito.
Negocie quais decisões exigem consenso e quais permanecem sob gestão do fundador.
Isso é essencial para a operação continuar eficiente. - Tenha uma assessoria jurídica especializada desde o início. Não basta um advogado que entenda de contratos. É necessário alguém que compreenda as dinâmicas de M&A, governança, valuation e negociação estratégica.
Aceitar um investimento pode acelerar sua empresa. Mas sem estratégia jurídica, você pode estar trocando o crescimento por dependência. O mútuo conversível não é o problema.
O problema é assinar sem entender o impacto de cada cláusula — jurídica, societária e estratégica.
Se você está considerando captar, ou já tem uma proposta na mesa, fale com quem domina essa estrutura. Negociar com investidores exige o mesmo nível de preparo que negociar com sócios. No jogo do capital, o dinheiro entra rápido. Mas o controle, quando sai, dificilmente volta.
Dimas Tafelli
OAB/SP 266.340
dimas@tafelliritz.com.br